terça-feira, 18 de agosto de 2015

Alguém apareceu para dizer a verdade

[Coluna publicada originalmente no site ABJ Notícias em maio de 2011]

Deu na Folha.com. Os bancos estão "sabotando" as medidas do Banco Central para conter a inflação. Quem botou a boca no trombone e, quase que por milagre, ganhou espaço (exíguo, é verdade) no debate foi Roberto Messenberg, coordenador do Grupo de Análise e Projeção do Ipea. A matéria pode ser lida aqui.

O caso é o seguinte. Os bancos estavam acostumados com a mamata da taxa de juros. Até então, era fácil. Aumentava a inflação, o governo subia os juros e os bancos ganhavam dinheiro do mesmo jeito - pois são os intermediários do dinheiro. O que a inflação tirava com uma mão o governo dava com a outra. E o cidadão comum pagava o pato, vivendo num país sem crescimento econômico e sem o aumento de renda e consumo que poderia experimentar.

Eis que o Banco Central inovou na praça, e resolveu adotar as "medidas macroprudenciais", cortando recursos para o crédito e afetando as operações mais rentáveis dos bancos. A subida de juros? Bem, fica para depois. Ou melhor, tem acontecido, sim, mas em tom mais suave, aquém do que o "mercado" espera, como foi possível ver na última reunião do Copom.

Pronto, está armado o circo. Para Messenberg, os bancos passaram a difundir que "a inflação está fora do controle" para tentar granjear apoio popular para o remédio amargo, a alta dos juros. Os bancos não contam, por exemplo, que, se a aceleração da inflação é por causa de commodities - cujo preço é definido internacionalmente -, mais juro ou menos juro não tem o poder de controlar o jogo.

Mas desgraça pouca é bobagem. Como se não bastasse, o jargão colou na grande imprensa. Parece que "o dragão voltou" e o Brasil está perdendo a batalha, e que isso é culpa da morosidade do governo. Governo, além de tudo, gastão (ninguém fala que foram os gastos do governo que sustentaram o Brasil de sofrer uma queda colossal como a dos demais países na crise de três anos atrás).

Para quem achava que terrorismo era privilégio de barbudos religiosos fanáticos, os amigos de Bin Laden, uma surpresa: o terror também vem de engravatados, moços de bons modos, que são incapazes de perturbar a ordem. A única diferença é o deus a que servem, que atende pelo nome de Dinheiro.

Tomara que a brechinha aberta por Messenberg seja aproveitada por outros, para que o brasileiro não aceite de mão beijada a continuidade dessa política definhante de juros altos.

Oba-oba Obama

[Coluna publicada originalmente no site ABJ Notícias em março de 2011]

A visita de Obama ao Brasil foi importante. Quer o mundo queira, quer não, os países emergentes desempenham uma função de muito mais destaque no contexto geopolítico. Isso significa que, para a construção de alianças internacionais, não é mais possível, como já foi, simplesmente ignorar esses países, juntamente com suas economias. Obama no Brasil é disso sinalização clara.

Entretanto, não faz mal pôr um pouquinho de azedume no caldo. Embora as manchetes tenham trombeteado que a visita resultou na assinatura de d-e-z acordos comerciais entre Brasil e Estados Unidos, não é, ainda, a tão aguardada liberalização que temos pleiteado junto à Organização Mundial do Comércio (OMC). Já vão aí mais de oito anos de luta do governo brasileiro para derrubar os subsídios à economia norte-americana que encarecem nossos produtos por lá, batalha iniciada em 2002. Desde então, vitórias esparsas e pontuais têm sido conquistadas, como a permissão da OMC para que o país retaliasse os Estados Unidos em virtude dos subsídios do algodão, no ano passado. Ainda assim, nada próximo do que o país sempre pretendeu. Os acordos que Obama assinou foram bastante periféricos em relação a essa querela histórica.

Se a rapadura é doce e parecia ter ficado mole também, podemos afivelar os cintos e aguardar com expectativa mais ações brasileiras contra as práticas comerciais norte-americanas. Mas, ao menos, podemos considerar dois pontos de esperança no horizonte: primeiro, quem dirige o jumbo de lá não é mais um sujeito do tipo de George Bush, mas o moço simpático Obama. Segundo, a posição crescente do Brasil no cenário mundial exige que os países do Norte ajam com um pouco mais de cautela em relação aos nossos clamores, ao invés de descartá-los como choro de bebê. Cabe ao atual governo brasileiro e à sua política internacional capitalizar esse êxito e repor as bases das relações entre economias, diminuindo a desigualdade histórica que tão mal fez aos chamados países do Sul. Sem oba-oba. E talvez com Obama.

Quando o horror se torna legítimo

[Coluna publicada originalmente no site ABJ Notícias em abril de 2011]

Saiu hoje em relatório do Procon: os juros do cheque especial são, em média, de 9,35% ao mês. Talvez os números meios soltos assim, sendo ditos e repetidos pelos jornais, rádios e TV, não nos ajudem a entender exatamente qual é a questão.

Vamos fazer o raciocínio inverso. Imagine que é você quem empresta dinheiro aos outros a essa taxa de juros. Suponha que, todo mês, você empreste 150 reais com a mesma taxa de juros que o banco cobra de você no cheque especial. Em seis anos de aplicação, quanto você teria desembolsado? É fácil: quase 11 mil reais. E quanto você teria, graças ao retorno dos juros? Você seria o novo milionário da praça. É isso mesmo. Em seis anos, emprestando 150 reais por mês com os juros do cheque especial, você se tornaria um milionário, ou, para ser mais exato, teria 998.930,85 reais.

Pois é. É isso que os bancos fazem todos os dias.

É fácil ficar revoltado nessas horas e xingar os bancos. Mas a verdade é que nossa época foi muito bem-sucedida em nos acostumar com a dívida. Como o pensador Zygmunt Bauman sintetizou no título de um livro recente, o modus vivendi da época é a "Vida a crédito". A dívida não é hoje mais um incômodo. Por isso nos sujeitamos a enriquecer bancos, multinacionais e governos para simplesmente podermos consumir um pouco mais.

O drama pode ficar pior: hoje milhões de empregos só existem graças à existência de uma raça de devedores. O lucro com os juros da dívida é transformado - parcialmente, é claro - em novos empregos, o que pode levar à conclusão de que a dívida é socialmente necessária. Não poderia ser outro o destino de um mundo em que o valor prioritário de uns é consumir e o de outros é lucrar. As duas pontas se juntam numa combinação nefasta, que legitima inclusive a violência relatada acima. É desastre social, humano, político, espiritual e ambiental. Que outros sinais são necessários para rever o projeto da civilização?

Adicionado em 16/04, às 19h45: Algumas pessoas reclamaram do título do artigo, que seria sensacionalista, evocando a tragédia de Realengo e capitalizando a atenção para um assunto completamente diferente. Por que será que não enxergamos o cenário descrito acima como "horror" também? Com todo respeito às famílias vitimadas nesse incidente infeliz, tragédias como aquela ocorrem de uma vez só e acabam. Já o cenário acima tira o pão da mesa de milhares de famílias todos os dias. Acho que a diferença é porque a economia mata aos poucos, e o que vai aos poucos nos incomoda menos.

Educação show

[Coluna publicada originalmente no site ABJ Notícias, em março de 2011]

Tem uma máxima que circula, de boca em boca, nos meios docentes: aluno só gosta de show. O preceito é só mais um desses usados para justificar o fracasso da educação brasileira, que, dizem, não tem conseguido transmitir os bons e velhos valores para a juventude.

Na verdade, parece que isso só passa de mais um ingrediente do caldo de generalizações e imprecisões que abriga a nossa cultura, incluídos aí alunos e professores. De que tipo de show se fala? Artifícios técnicos e tecnológicos atrativos? Cambalhotas no ar? Professor-palhaço e sala de aula-circo? Bom, se é isso que se entende por show, é preciso dizer que não é só o aluno que gosta de show, mas todos nós. É por isso que ficamos inertes assistindo às atrocidades da programação televisiva dominical, por exemplo. Não são só os alunos que se rendem aos encantos do entretenimento fácil.

Um show diferente, este, sim, atrativo a muitos alunos (mas não a todos), é aquele constituído de raciocínios bem feitos, explicações novas sobre fatos corriqueiros, relações de fatos distantes com a realidade provinciana e assim por diante. Quando colocados de frente com esses esforços educativos, muitos alunos reagem positivamente, saem de sua costumeira letargia, e a educação tem efeito real.


Não há saídas fáceis para a educação no Brasil. Não é possível, por exemplo, iludir professores dizendo que vão transformar o mundo. Há alunos que nunca se interessarão por algo do cânon acadêmico, assim como todo e qualquer ser humano. Seria até interessante debater a real importância do pomposo currículo das nossas escolas, mas isso fica para outros carnavais. O que interessa aqui é refletir em qual é o show que nossa educação pode oferecer, que é a cultura, e se realmente estamos interessados nele. Se for só da boca pra fora, é melhor adotar uma postura mais modesta e lamentar a condição humana como um todo, e não a dos alunos. Honestidade intelectual é uma das melhores lições que nossa educação pode ensinar.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Música do início ao fim


Eu gostava de música. Quando nasci, já era músico, sem ter a menor consciência disso. O meu choro era o único que apresentava harmonia e técnica musical. No berçário, os outros bebês morriam de inveja e gritavam cada vez mais alto para me desafiar e abafar o som melodioso que eu reproduzia. Em vão. O meu canto sobressaía.

À medida que crescia, minha vida ficava mais impregnada de música, mas por diferentes razões. Primeiro, mamãe insistia em tocar flauta doce, piano, violão, violino e sussurrar canções ao meu ouvido para que eu me seduzisse pela música. Mas ela tinha um problema com a afinação que causou um efeito contrário, pois a música se tornou um sacrilégio para mim.

Mamãe me matriculou em um curso de Musicalização Infantil e foi lá que eu descobri que havia música diferente daquela que mamãe ensinava. Eram três horas semanais que eu adorava, pois ficava sem escutar a música dela. Três horas que eram esquecidas assim que mamãe me buscava de carro e, ao invés de ligar o rádio, começava a cantar. Aquilo causava uma dor intensa nos meus ouvidos e eu, criança, não conseguia entender o porquê.

Os anos se passaram. Eu já era um adolescente e compreendia porque a música causava em mim sentimentos tão antagônicos. Quando não estava perto de mamãe, a música era maravilhosa. Quando estava com mamãe, a música era terrível. Foi então que começou a minha busca pela independência, pela libertação da música de mamãe. Mas eu tinha apenas 15 anos e não tinha como sair de casa e me sustentar. Na escola, até fiquei conhecido como o "empresário" da classe, por causa das minhas seguidas tentativas de firmar um negócio, ganhar dinheiro e sair de casa. Contudo, nada dava certo.

Aí mergulhei nas drogas. Comecei na maconha e logo parti para a cocaína. Eu sabia que estava no caminho errado, que aquilo era apenas uma fuga. Mamãe, desesperada, não sabia o que fazer e alguém disse que ela devia passar o máximo de tempo comigo, mostrando todo o seu apreço e dedicação por mim. Então diariamente ela se trancava comigo no quarto e cantava.

A minha história acabou quando mamãe começou a estudar música durante o dia – para cantar à noite. Eu já não podia suportar mais. Queria viver, mas a vida não fazia mais sentido. Um dia, mamãe voltou da aula e me disse que agora cantaria bem, porque aprendera arpejos. Aqueles segundos foram uma eternidade para mim. Eu queria gritar e dizer "não cante!", mas não deu tempo. Ela cantou. E os arpejos de mamãe me levaram ao suicídio.

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Texto escrito para um concurso da revista Piauí. O objetivo era escrever uma crônica que contivesse a expressão "e os arpejos de mamãe me levaram ao suicídio".


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Publicado originalmente em http://talestomaz.blogspot.com no dia 05 de março de 2009.

Morre joão


Morreu hoje aos 61 anos joão. O sobrenome dele não será divulgado porque não importa, não vai diferenciá-lo da multidão de joões que existem por aí. Ele é só mais um brasileiro comum. Não era nenhuma estrela pop que só tem qualidades, nem um político corrupto que só tem defeitos. Era um homem contraditório, que tinha o bom e o mau ao mesmo tempo. Era o bom pai e o mau funcionário. O bom pagador e o mau marido. Sim, joão era o bom pai e o mau marido ao mesmo tempo, algo que parece inconcebível nos noticiários de estereótipos que assistimos.

joão morreu em paz, dormindo. Não levou uma porção de tiros enquanto se escondia da polícia. joão não era um grande astro da guitarra que morreu por estupidez, ou melhor, por overdose. joão não era casado com uma princesa e herdeiro do trono real. Nem foi um grande presidente que tomou medidas importantes para acabar com a opressão do seu país. Mas também não foi um dos oprimidos, em situação deplorável, cujas fotos rendem royalties até hoje a seus autores.

joão morreu normal e anônimo, como morrem 99,9% das pessoas, as que não ocupam as páginas, telas e ondas dos noticiários, mas que compõem a massa de seres humanos que povoa o mundo, cada um com sua história pessoal, individual e única.

Quem sabe virasse um case de matéria, como Paulo Almeida virou. Mas joão não tinha nenhum sobrinho cujo amigo era jornalista, como Paulo Almeida tinha e por isso virou case, ganhou até sobrenome e direito a letra inicial maiúscula. joão era apenas o vizinho de Almeida. Mas joão já esteve nos jornais. Ele estava lá na tela quando o apresentador anunciou a redução no número de desempregados. joão estava num daqueles números.

joão era normal, sem graça e sem sal, herói do neto a quem dava um bombom Sonho de Valsa (não era Kopenhagen, mas pelo menos não era um simples Babaloo) em todas as visitas. Ah, joão, se fosse relatado tudo o que você viveu! Cada alegria, cada tristeza, o medo do desemprego, a violência com que tratou a mulher na juventude, o remorso rondando a mente na hora de dormir, as vezes em que prometeu a si mesmo que não beberia mais, os convites dos amigos para ir ao bar, os negócios que você fez, os ônibus que você tomou, o trânsito que enfrentou, a comida que você preparou quando ela estava doente. Ah, joão, tanta coisa comum. Nada disso ia entrar nos jornais. Nada disso dá notícia.

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Publicado originalmente em http://talestomaz.blogspot.com no dia 11 de julho de 2008.

Dor


Sorriso

O sorriso economizado à minha presença
é investido em olhares alheios
Alheios a todo amor,
toda dor que existe
Alheios ao torpor com que observo a cena
Obscena, violenta, pulsão de morte

Coração

Derrete-se minha face frente ao calor,
às chamas que dançam e corroem
o abrasado carvão enegrecido
Não pelas sombras efêmeras
Mas pelo tempo que sepulta toda morte
Invariável, implacável

Carvão coração, quem te dá vida?
Ainda há que se descobrir
como fazer a chama queimar sem matar
o tempo passar sem sepultar

A dor que aperta o peito
e só faz aumentar
é produto do amor multiplicado em todo cuidado,
Todo carinho, de quem sofre calado,
de quem sofre sozinho
por sentir o vazio que preenche o peito
como bala que rasga
como única resposta à pergunta fatal
Quando vais me amar?

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Publicado originalmente em http://talestomaz.blogspot.com no dia 19 de junho de 2008.