quinta-feira, 7 de junho de 2012

Música do início ao fim


Eu gostava de música. Quando nasci, já era músico, sem ter a menor consciência disso. O meu choro era o único que apresentava harmonia e técnica musical. No berçário, os outros bebês morriam de inveja e gritavam cada vez mais alto para me desafiar e abafar o som melodioso que eu reproduzia. Em vão. O meu canto sobressaía.

À medida que crescia, minha vida ficava mais impregnada de música, mas por diferentes razões. Primeiro, mamãe insistia em tocar flauta doce, piano, violão, violino e sussurrar canções ao meu ouvido para que eu me seduzisse pela música. Mas ela tinha um problema com a afinação que causou um efeito contrário, pois a música se tornou um sacrilégio para mim.

Mamãe me matriculou em um curso de Musicalização Infantil e foi lá que eu descobri que havia música diferente daquela que mamãe ensinava. Eram três horas semanais que eu adorava, pois ficava sem escutar a música dela. Três horas que eram esquecidas assim que mamãe me buscava de carro e, ao invés de ligar o rádio, começava a cantar. Aquilo causava uma dor intensa nos meus ouvidos e eu, criança, não conseguia entender o porquê.

Os anos se passaram. Eu já era um adolescente e compreendia porque a música causava em mim sentimentos tão antagônicos. Quando não estava perto de mamãe, a música era maravilhosa. Quando estava com mamãe, a música era terrível. Foi então que começou a minha busca pela independência, pela libertação da música de mamãe. Mas eu tinha apenas 15 anos e não tinha como sair de casa e me sustentar. Na escola, até fiquei conhecido como o "empresário" da classe, por causa das minhas seguidas tentativas de firmar um negócio, ganhar dinheiro e sair de casa. Contudo, nada dava certo.

Aí mergulhei nas drogas. Comecei na maconha e logo parti para a cocaína. Eu sabia que estava no caminho errado, que aquilo era apenas uma fuga. Mamãe, desesperada, não sabia o que fazer e alguém disse que ela devia passar o máximo de tempo comigo, mostrando todo o seu apreço e dedicação por mim. Então diariamente ela se trancava comigo no quarto e cantava.

A minha história acabou quando mamãe começou a estudar música durante o dia – para cantar à noite. Eu já não podia suportar mais. Queria viver, mas a vida não fazia mais sentido. Um dia, mamãe voltou da aula e me disse que agora cantaria bem, porque aprendera arpejos. Aqueles segundos foram uma eternidade para mim. Eu queria gritar e dizer "não cante!", mas não deu tempo. Ela cantou. E os arpejos de mamãe me levaram ao suicídio.

==

Texto escrito para um concurso da revista Piauí. O objetivo era escrever uma crônica que contivesse a expressão "e os arpejos de mamãe me levaram ao suicídio".


--

Publicado originalmente em http://talestomaz.blogspot.com no dia 05 de março de 2009.

Nenhum comentário:

Postar um comentário