terça-feira, 18 de agosto de 2015

Quando o horror se torna legítimo

[Coluna publicada originalmente no site ABJ Notícias em abril de 2011]

Saiu hoje em relatório do Procon: os juros do cheque especial são, em média, de 9,35% ao mês. Talvez os números meios soltos assim, sendo ditos e repetidos pelos jornais, rádios e TV, não nos ajudem a entender exatamente qual é a questão.

Vamos fazer o raciocínio inverso. Imagine que é você quem empresta dinheiro aos outros a essa taxa de juros. Suponha que, todo mês, você empreste 150 reais com a mesma taxa de juros que o banco cobra de você no cheque especial. Em seis anos de aplicação, quanto você teria desembolsado? É fácil: quase 11 mil reais. E quanto você teria, graças ao retorno dos juros? Você seria o novo milionário da praça. É isso mesmo. Em seis anos, emprestando 150 reais por mês com os juros do cheque especial, você se tornaria um milionário, ou, para ser mais exato, teria 998.930,85 reais.

Pois é. É isso que os bancos fazem todos os dias.

É fácil ficar revoltado nessas horas e xingar os bancos. Mas a verdade é que nossa época foi muito bem-sucedida em nos acostumar com a dívida. Como o pensador Zygmunt Bauman sintetizou no título de um livro recente, o modus vivendi da época é a "Vida a crédito". A dívida não é hoje mais um incômodo. Por isso nos sujeitamos a enriquecer bancos, multinacionais e governos para simplesmente podermos consumir um pouco mais.

O drama pode ficar pior: hoje milhões de empregos só existem graças à existência de uma raça de devedores. O lucro com os juros da dívida é transformado - parcialmente, é claro - em novos empregos, o que pode levar à conclusão de que a dívida é socialmente necessária. Não poderia ser outro o destino de um mundo em que o valor prioritário de uns é consumir e o de outros é lucrar. As duas pontas se juntam numa combinação nefasta, que legitima inclusive a violência relatada acima. É desastre social, humano, político, espiritual e ambiental. Que outros sinais são necessários para rever o projeto da civilização?

Adicionado em 16/04, às 19h45: Algumas pessoas reclamaram do título do artigo, que seria sensacionalista, evocando a tragédia de Realengo e capitalizando a atenção para um assunto completamente diferente. Por que será que não enxergamos o cenário descrito acima como "horror" também? Com todo respeito às famílias vitimadas nesse incidente infeliz, tragédias como aquela ocorrem de uma vez só e acabam. Já o cenário acima tira o pão da mesa de milhares de famílias todos os dias. Acho que a diferença é porque a economia mata aos poucos, e o que vai aos poucos nos incomoda menos.

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